sexta-feira, janeiro 31, 2014

Texto na revista Fórum: Quando matar um índio não é algo mau: o caso Las Rubieras

Semana passada saiu um novo texto de minha autoria no Blog dos Indígenas, espaço aberto a colaborações na Revista Fórum. O material fala de um caso antigo de  massacre de índios na fronteira da Venezuela com a Colômbia. Foi inspirado a partir da descoberta de um clipe do grupo Campesinos Rap, que achei procurando artistas que misturassem joropo, ritmo tradicional de meu país nativo, com o hip hop. 

Do clipe, fui pesquisar o caso. Demorei um pouco até achar as referências textuais que linco no texto: um artigo falando do caso Las Rubieras e um blog escrito pelo advogado de defesa dos acusados da chacina. 

Depois disso veio a fase de criar coragem, muita coragem, para escrever. Entre a descoberta dos textos e a redação final, acho que se passaram uns dois meses...ando preguiçoso, né?

Lê o material e compartilha à vontade. Se você for indígena ou trabalha com os povos originários, manda seu texto, foto, filme, desenho, que a gente está querendo publicar.




Quando matar um índio não é algo mau: o caso Las Rubieras


O índio é um bicho preguiçoso, selvagem, sem cultura, sem o hábito de economizar e acumular que tanto bem fazem ao sistema econômico capitalista. Quer terras mas não sabe como produzir em larga escala. Só atrapalha o progresso e a economia, que tanto precisa de suas terras para desenvolver-se. Sendo assim, matar um indígena para garantir o avanço da mineração, da agricultura e/ou da pecuária é totalmente justificável. A razão estará sempre ao lado de quem atira ou manda atirar.

O parágrafo anterior bem poderia ter sido direcionado aos indígenas do Brasil, mas não sejamos exclusivistas. Eles têm parentes espalhados por todos os cantos da América do Sul. Ou seja, se atrapalham aqui o progresso, como não o fariam no Equador, na Colômbia, no Peru, na Bolívia?

Para esses estorvos, vale desde 1492 a lei do aço. Se com celulares e câmeras digitais os casos atuais de violência e conflitos são registrados facilmente (veja neste link matérias do arquivo da Fórum para saber mais e vamos em frente), vale a pena pensar sobre quantos casos houve sem serem anotados nos cadernos de história.

Quantos mortes de indígenas nas mãos de capangas de fazendeiros ficaram longe dos holofotes da justiça, da mídia? Difícil saber mas sempre aparecem. Foi o caso de um massacre acontecido na fronteira da Venezuela com a Colômbia nos anos 1960.

Donos de terras convidaram para uma festa um grupo de 18 indígenas da etnia Cuiba. Enquanto estavam comendo, foram atacados com terçados e facas. Os que tentaram fugir foram abatidos a tiros, fossem adultos ou crianças. Somente dois conseguiram escapar, seriamente feridos. Os corpos dos mortos foram queimados e misturados ao lixo e fezes dos animais da fazenda Las Rubieras, onde aconteceu o massacre.

Talvez tudo tivesse ficado por isso mesmo se os dos Cuibas sobreviventes não tivessem aparecido meses depois. O caso Las Rubieras foi parar na justiça. Ao defender-se, os acusados alegaram que não sabiam que matar índios era algo ruim, algo mau.

“Para nós, matar índios é como matar veados, pacas e capivaras, com a diferença de que os veados, as pacas e as capivaras não nos fazem dano e os índios sim”, declarou um dos acusados.

A defesa refletiu o contexto histórico da região. Desde 1870, conforme conta o historiador Augusto J. Gómez L. em seu artigo ‘A guerra de extermínio contra os grupos indígenas caçadores-coletores das planícies orientais”, havia registros de massacre dos índios que, sem terras e com a redução de animais silvestres para caça, abatiam gado dos fazendeiros para poder comer.

Os casos de agressão eram tão comuns e naturalizados pela sociedade que foram criados dois termos para identificar o tipo de violência praticado: “guajibiada” designava o ato de procurar e matar grupos de Cuibas e outras etnias da região. “Tojibiada” era a perseguição das mulheres indígenas por homens a cavalo. Quando finalmente elas ficavam cansadas, eram laçadas como gado, jogadas ao chão e estupradas.

Mais de um século de assassinatos em nome da defesa de seus interesses haviam criado na população dos Llanos (planícies) a convicção da normalidade destes atos. Como condenar alguém que agiu conforme os hábitos da região? O artigo do professor Augusto Gómez é cheio de relatos de outras mortes de índios, explicitando pactos mortais entre fazendeiros e autoridades para, pelo uso da força, garantir o uso e a ordem nas terras. Escrito em espanhol, o material pode ser baixado AQUI.

O caso Las Rubieras terminou com todos os acusados sendo absolvidos. A história teve repercussão mundial à época, como pode ser conferido nos textos publicados em 2012 em um blog por Jaime Rafael Pedraza, que atuou como advogado de defesa dos envolvidos.

Toda essa história resumida acima vai virar um filme na Venezuela. Em 2013, o grupo de hip hop Campesinos Rap gravou um clipe com cenas do longa, que deveria ter sido lançado ainda no ano passado.

O clipe apresenta cenas do futuro filme e a letra pode ser dividida em duas partes: a primeira relata o massacre e o julgamento e serve para protestar contra as inúmeras violências cometidas contra os povos indígenas. A segunda atira contra os países que utilizam argumentos antropológicos para oprimir e ocupar militar e economicamente outros países.

Confira o clipe do grupo Campesinos Rap:





Para encerrar, o trecho final do artigo do professor e historiador Augusto J. Gómez L., mostrando que se atualmente não há “guajibiadas” e “tojibiadas”, a situação dos Cuibas não melhorou:


Hoje, os últimos redutos indígenas estão confinados nos rincões das vastas planícies, fugindo dos enfrentamentos armados que, com crescentes intensidade, vêm acontecendo na região nas últimas décadas entre a guerrilha, o exército, os paramilitares e o narcotráfico. Outro grande número de famílias indígenas migrou para os centros urbanos. Lá, deprimidos, humilhados, prostituídos e alcoolizados, concluem sua agonia, depois de mais de um século de perseguição sistemática por aqueles que se chamam “civilizados” mas não demonstram sê-lo.

Edgar Borges, escritor, jornalista, ativista cultural, venezuelano, descendente da etnia Wapichana. Blog pessoal e Twitter.

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