terça-feira, março 22, 2016

O mugunzá de dona Vanda - crônica selecionada para a antologia do Prêmio Sesc/DF de Literatura – Crônicas Rubem Braga


Tem certos domingos em que acordo com uma vontade doida de comer mugunzá. Mas não é qualquer um, não. Tem que ser o da banquinha da dona Vanda, ali no mercado municipal do São Francisco. É o melhor da cidade, melhor até do que a minha mãe faz. Tem a consistência certa, a dose de açúcar no ponto, o milho no grau perfeito de ser mastigado. Em resumo, é um espetáculo.
 
Nesses domingos de desejo, saio cedo de casa. Até uns dois anos atrás, atravessava quatro bairros para chegar no mercado. Hoje estou bem mais perto, a mais ou menos um quilômetro e chego lá, de carro, em menos de dois minutos. As meninas da banca me conhecem e já vão perguntando “um mugunzá e o que mais, meu bem?”. Geralmente, complemento o pedido com uma tapioca recheada com queijo.
 
Comer mugunzá polvilhado com canela é uma delícia. Além do prazer culinário, sempre me traz à memória o meu avô, seu Edgar, que também era fã do mingau de dona Vanda e me levava quando criança até a banquinha dela na avenida Getúlio Vargas, noutra parte da cidade.
 
Por isso, cada colherada tem sabor de infância, principalmente do tempo em que não morava em Boa Vista e vinha para cá somente passear as férias. Era nesses dias em que seu Edgar me acordava cedo, saíamos e, enquanto ele comprava verduras e outras coisas para o almoço, eu ficava tomando mingau.
 
Lembro que o vô sempre levava uns potes de mugunzá para casa. Daí, dava para ficar beliscando o dia todo. Ou seja, o mingau de dona Vanda nos acompanhava o dia todo, saciando fome e gula desde os anos 1980.
 
Pelo menos era isso o que eu achava. Domingo desses fui no mercado, pedi um mingau e uma tapioca e a minha esposa pegou bolo de leite e suco de taperebá. Enquanto comíamos, conversei com ela, pela centésima vez, sobre as boas lembranças que o mugunzá me traz, principalmente as relacionadas ao meu avô.
 
Daí, entre uma colherada e outra, veio a questão: há quanto tempo dona Vanda trabalha com comida e quando foi que saiu da calçada da avenida Getúlio Vargas para o mercado de São Francisco?
Essa informação seria muito importante para complementar o meu quadro de memórias com o seu mingau. Na hora de pagar, perguntei isso dela. Sua resposta me deixou chocado: “meu filho, eu desde sempre vendi aqui. ”
 
Eu, estático, só pensava em gritar “COMO ASSIM, DONA VANDA? DE QUEM ERA AQUELE OUTRO MINGAU?!!”. Controlado, disse apenas “é mesmo? Achava que a senhora também vendia em outro lugar...”.
 
Paguei e deixei o mercado meio decepcionado com as certezas sobre as minhas memórias. Mesmo assim, como provavelmente nunca saberei quem era a outra pessoa lá da banca na Getúlio Vargas, decidi nomeá-la minha embaixadora eterna do bom mugunzá. Isso sem ligar para quando ou onde o mingau dela entrou em minha vida. 

(Crônica selecionada para a antologia do Prêmio Sesc/DF de Literatura – Crônicas Rubem Braga. Saiba mais sobre a participação no prêmio clicando aqui.)


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