terça-feira, novembro 29, 2005

Imagine a PM matando seus parentes


Imagine acordar às quatro da madrugada ouvindo gritos desesperados na casa ao lado. Imagine perguntar a um rapaz e duas moças com os rostos desfigurados pela dor o que houve e receber como resposta que houve uma desgraça e a Força Tática da Polícia Militar matou Sandro Borges, seu primo de apenas 16 anos.
Imagine levar a sua afilhada, irmã de Sandro, até o 1° DP e depois até o Pronto Socorro dizendo-lhe apenas que o menino levou um tiro e está internado. Imagine seu choro ao ouvir a confirmação da morte pela bala da PM.
Imagine ligar para a mãe do rapaz pedindo para vir ao Pronto Socorro e somente lá, frente a frente, informá-la da morte do filho primogênito.
Imagine a solidão de ser o primeiro da família a ver na "pedra", embrulhado em um saco plástico negro o corpo rígido de seu primo, notar os buracos causados pela bala no braço esquerdo e no tórax, perceber sua palidez, lembrar que o viu na barriga da mãe, das muitas vezes que o carregou no colo, de como falava muito e alto, de sua extroversão, da sua paixão pela informática.
Imagine ter de comunicar a morte aos tios, dividir a responsabilidade de falar com a polícia técnica e ouvir, uma hora e meia depois, o rapaz que o acordou de madrugada dizer que ainda não havia conseguido prestar queixa.
Imagine entrar na casa de seus avós maternos às sete horas da manhã para comunicar-lhes, malditas lágrimas incontidas, que a PM chegou para apartar uma briga sem o devido preparo e atirou para cima, acertando Sandro, que estava escorado no parapeito da pizzaria, bem longe da confusão.
Agora, tente ouvir os gritos desesperados da avó e visualizar o avô caindo no sofá, em estado de choque. Avance um pouco no tempo e tente entender o que dois supostos investigadores da Força Tática tanto insistem em querer conversar com o médico legista, ouvi-los dizer ao pai do rapaz que sabem de sua dor e lamentam o ocorrido.
Abra um parêntese para ouvir e ver o pai do menino lembrando de cada frase dita no seu último encontro, na sexta-feira 25, de como se tratavam, das gírias do filho, de seu tão próprio "valeu, men!", das noites jantando juntos, das confidências, de como quer justiça.
Feche o parêntese, espere seis horas pela liberação do corpo, providencie o velório, tente comer um pouco apenas para não cair de fraqueza, vá até o local da cerimônia e note como o menino era querido pelos colegas de escola e festa. Perceba a estupefação no rosto de dezenas de adolescentes, ouça seu choro, seus questionamentos sobre a ação da polícia, olhe no outro lado da rua, sentado na calçada, ainda desesperado, o rapaz que o levou até o Pronto Socorro e conta ter sido fechado três vezes pelo carro da PM, que não queria que levassem o corpo para ser atendido.
Abra novo parênteses e ouça, na segunda-feira 28, o comandante da PM dizer que há sempre várias versões em todo caso, todas sempre contraditórias, mas a "concreta" é a contada pelos seus subordinados. Tente distinguir aonde vai parar o inquérito da corporação e note as nuances de tendenciosidade.
Enterre seu primo, console seus familiares, ouça as palavras dos amigos antes de fecharem a cova, a voz desesperada do pai. Volte para casa e converse com seu avô, escrivão e delegado de polícia na época do Território Federal de Roraima. Imagine o esforço que ele faz, prostrado na cama, para murmurar que na segunda seguinte iria com o menino checar preços de computadores para presenteá-lo. Acrescente a isso que aquele domingo fatídico era para ser um dia de festa e passeio familiar no sítio de amigos para comemorar o nascimento, no mesmo dia, de mais uma prima de Sandro.
Agora, resuma tudo isso no desconforto trazido pela realidade da morte, na estúpida esperança do retorno da normalidade, de que tudo foi um sonho, na lembrança recorrente de momentos passados juntos com o menino, quando ele falava bobagens ou quando parava ouvir histórias de adultos. Acrescente o medo de que algo assim atinja outros parentes e está o formado o quadro das famílias de Sandro, chamado em casa de Taffarel e na rua de Ômega.
Depois de todo este esforço, lembre que este é o terceiro ou quarto caso de morte envolvendo policiais civis e militares neste ano e pense para onde vai todo o dinheiro investido na capacitação destas pessoas.

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