terça-feira, setembro 06, 2005

Da deixa

Os dois estavam cansados. Haviam acabado de reencontrar-se depois de estarem muito tempo ausentes. Era o cheiro de um incrustando-se no outro, deixando suas marcas na pele, ampliando aquilo que Nelson Rodrigues chamou, com outras palavras, de nostalgia amorosa.

Aquela história havia começado assim, quase por acaso. Cheios de passado, não arriscavam dar-se totalmente. "Vá lá e a entrega vire uma arma mortal nas mãos desta figura", pensavam às escondidas.

Os cabelos da menina, cacheados, pretos e acariciados, grudavam na pele, como se fosse desleixo. Os olhos de ambos procuravam um tipo de verdade ? sempre faziam isso e nunca a achavam. "É incrível o tamanho do poço de mistérios cavado por uma pessoa sem que ninguém caia nele", lembravam ter lido em uma tabuleta pendurada na mureta de um bar. Costumavam repetir a frase durante conversas com seus amigos.

Era uma despedida. Ficara acordado: cada um procuraria o que fazer longe do outro. A cena era comum, pobre até, mas carregada de simbolismo. Dois corpos próximos pensando na distância.
"Do jeito que os relacionamentos terminam ou se estendem, as visões assumem tons surrealistas", filosofava o rapaz. A sua experiência, pouca mais válida, afirmava que sempre um dos que formam o romance desencanta-se e diz "tudo bem. Seremos bons amigos...". Entre parênteses e após as reticências, vem escrito em letras enormes: "talvez dentro de alguns anos!".

A menina lembrava de sua amiga mais querida. Ela sempre falava que quando há bom humor e um pouco de sordidez, rosas são enviadas aos alérgicos, acompanhadas de um cartão colorido, burlesco, com os seguintes dizeres em letras escandalosas: "lembranças de um passado inglório".
Não era este o caso deles. Casal jovem e bonito, decidiu acabar com o romance de uma maneira mais suave, como se fosse a queda de uma pétala, ato que não resulta em mágoas para a rosa ou para quem a admira. O motivo da deixa foi descoberto logo. Algo faltava entre os dois. Se era vivência, cumplicidade, sentimento, não conseguiram descobrir. Com pouco tempo para conversar sobre o futuro, só haviam achado espaço para debater o final de seu convívio.

Fora do quarto, a chuva caia. Por coincidência, tocava na rádio uma música antiga, dizendo "chove lá fora e aqui faz tanto frio...". Caras sérias, mãos tímidas, palavras pronunciadas suavemente. Parecia uma sessão inquisitorial, onde o juiz determina a morte do herege com total frieza, com a certeza de fazê-lo em nome de Deus e da moral. Se era assim, para que continuar?

Enquanto as lágrimas rolavam pelo rosto de um, o outro pensava como era possível gostar de alguém e não sentir a sua falta. Ele a puxou pelos braços e começou a beijá-la, com o mesmo desejo que um outro cantou: "venha me beijar, meu doce vampiro, à luz do luar...".

Tocaram-se, sentiram novamente o gosto do suor, disseram "até logo. Um dia a gente se cruza e comenta a nossa história, cheia de mentiras verdadeiras e verdades mentirosas".

Nenhum comentário: