segunda-feira, outubro 25, 2004

Domingo de teatro na praça

Por pouco, a oficina de interpretação realizada pela turma do Erro Grupo não acabou na delegacia. Os catarinenses, que estiveram em Roraima a convite do Sesc, promotor do projeto Palco Giratório, levaram os alunos para mostrar na rua à noite o que haviam aprendido durante a tarde.
Após receberam chamadas de supostos pais inconformados com a performance do ator Anderson, um dos participantes da oficina, Policiais Militares e Guardas Municipais apareceram no Portal do Milênio, uma das praças mais freqüentadas de Boa Vista, para saber qual o motivo daquele rapaz estar deitado sem camisa no chão e gritando como um louco na noite de domingo.
Convencer os Guardas foi fácil. Eles só queriam saber se aquilo ali era mesmo teatro. Pergunta até justificável no contexto, pensariam, afinal, gritar é atuar? Uma das atrizes do Erro, a (ai, ai) bonitona Dayana Zdebsky, já enfezada com a discussão, ameaçou mostrar a registro da DRT para provar a verdade de sua profissão. Não precisou.
Ao lado, um dos rapazes do grupo, com uma barba à Los Hermanos, travava um debate com um dos sujeitos que aluga carrinhos elétricos para as crianças passearem na praça. O rapaz queria a retirada dos atores, alegando que estavam assustando as crianças e que os pais haviam reclamado da performance. Com a sensatez de quem estava perdendo fregueses para o teatro, invocou a bíblia para justificar seu pedido-ordem. "Isso é coisa do diabo. As crianças não podem olhar isso", disse. O catarina barbudinho, coitado, ainda tentou ter uma conversa racional, citando arte, liberdade de ir e vir, direito de escolha...
Nesse momento, dois Policiais Militares já estavam a perigosos centímetros do ainda deitado no chão e berrante Anderson, que espertamente olhava para a noite de lua crescente em vez de encará-los.
Os PMs queriam parar tudo, sob a alegação de perturbação da ordem pública. Mas quem havia reclamado, além dos donos dos carrinhos? Pais, vários pais, respondeu o policial, sem ter em conta que estava rodeado por adultos e crianças em êxtase querendo saber o que estava acontecendo. As mesmas crianças que alguém alegara estarem com medo minutos atrás.
É um projeto teatral, é arte, alguém explicou. Isso é arte?, inquiriu com um sincero ar de desconhecimento. A explicar que comedia dell arte não é Casseta & Planeta e coxia nunca foi parente de quibe, é melhor ser pragmático na argumentação. É sim, é o encerramento de um curso, responderam outro clone de Los Hermanos, ops, ator do Erro, e Rosana, do Sesc Roraima. "Ah, mas então vocês deviam avisar as pessoas, explicar o que estão fazendo. É melhor parar e explicar", pediu.
Dayana, você, que tem uma voz forte, pede um segundo para o Anderson parar e grita bem alto que isso aqui é teatro? Ah, não. Não tenho como fazer isso, respondeu a (ai, ai) enfezada bonitona.
Quase nesse momento, o berrante Anderson, que talvez nunca tivesse visto tantos pés e pernas em torno dele, levantou como se nada, saiu andando com calma, não sem antes fazer uma debochada pose de Madame Satã, e foi aplaudido por todos os presentes. Fim do espetáculo, que ficou mais rico com a participação dos representantes da lei.
As outras intervenções transcorreram tranquilamente. Ninguém ameaçou o Renato (louco orientador), a Lidiane e o Marcos (a chorosa e o filósofo), a Joelma (noiva abandonada), a Kywsi e a Carol (animadoras) ou o restante dos 17 participantes da oficina.

Conclusões:

Deveríamos ter deixado os PMs levar o Anderson e a turma do Erro. Ia ser engraçado ler/ouvir a justificativa da idiota prisão na mídia. Sem contar que poderia ter vendido a matéria para o Diário Catarinense (manchete: atores catarinas são presos em Roraima por apresentar-se na praça) ou para o Diarinho do Litoral (Fim do mundo: Em Roraima, meganhas enfiam caras do teatro catarinense no xadrez).
No final, foi concluído que tudo pareceu uma briga do capital contra a arte. Venceu a arte, graças a Deus.
Surpreendeu-me como as pessoas questionaram os atores sobre o conhecimento, fé e obediência às leis de Cristo. Pus-me a pensar que ou o Filho do Homem não gostava de teatro ou fazia performances muito melhores de que as apresentadas no domingo.

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